02/03/1974
Cecília Ferreira da Silva
5 de outubro de 2024
Depois de 50 anos do ocorrido, segue abaixo o relato do Marcelo Werneck, antigo associado e ex-diretor técnico do CEC nos anos 70. Marcelo entrou em contato com a Diretoria 2023-2025 compartilhando o relato a seguir e dada a relevância educativa da experiência, comparatilharemos com vocês. O relato e as fotos foram fornecidos por Marcelo W em 28/9/24.
Relato:
“O Dedo de Deus foi conquistado em 1912 por quatro brasileiros, escalando à moda antiga, usando escadas e troncos, corda de sisal e grampos de uma polegada de diâmetro enfiados em orifícios escavados à talhadeira e marreta (hoje ainda usamos grampos e brocas só que de aço inox bem mais finos). Essa via, que se chamou Chaminé Teixeira, em homenagem a um dos conquistadores, hoje é usada para descida em rapel. Temos ainda a via da Face Sul, dificílima, 4° grau, e a Face Leste, mais popular, uma enorme chaminé de baixo a cima.
Era anos 70 e escalamos pela Face Leste na variante Maria Cebola, um paredão de agarras superexposto, mas que contorna a chaminé do “L”, uma chaminé nojenta, estreita, escura e longa.
Lá estávamos nós no cume do Dedo de Deus, eu, Marcio, Fom-Fom e outro colega que me esqueci do nome.
Não gosto de ficar muito tempo nos cumes, o certo é comemorar a chegada de mais um cume e descer, porque a descida sempre é mais longa que a subida.
Mas o Márcio levou a flauta e ficou tocando. OK, então vamos admirar a paisagem. Vista deslumbrante de 1.692 metros de altitude. Ao longe se vê os Três Picos de Friburgo, o Caledônia, sempre me chamando, e mais além, o Peito de Pomba de Macaé.
Havia uma nuvem preta lá nos Três Picos. Ué, mas eu acabei de ver os Três Picos limpinhos… Ah! A nuvem está na frente deles, e soltando raios.
Continuo olhando a linda vista e a flauta tocando um Vivaldi, o que seria melhor do que isso?
Volto o olhar para os Três Picos, mas não se vê mais, a nuvem cresceu. Cresceu não, está vindo para cá, e soltando raios para baixo!
– Márcio, vamos descer, vem chuva aí!
E o maior Sol bem acima de nós.
– Marcelo, que chuva nada, está Sol, vamos aproveitar a beleza daqui. E volta a tocar As Quatro Estações.
– Marcio, olha a nuvem que vem vindo! E a Flauta Mágica não o deixa escutar.
E a nuvem já pertinho, continuava preta e soltando raios!
– Marcio, fica aí com o Fom-Fom que eu vou descer com meu colega de cordada.
Eram duas cordadas, pego minha corda e me preparo para descer. Já se ouviam as trovoadas e começou a respingar e escurecer.
Desço a primeira parte da descida que é a escada de ferro e na beirada do precipício da Chaminé Teixeira me preparo para o rapel da primeira parte
da descida de corda. Quando olho para trás para ver a nuvem, não se via mais nada, tudo escuro e começou a chover. Vejo é o Marcio vindo atrás de nós.
Vamos rápido, desço até o primeiro platô, prendo a ponta da corda e espero os outros três descerem. E chuva aumentou, agora temporal, trovoadas e clarões. Mas os clarões e as trovoadas estão vindo juntos! Mal sinal, os raios estão em cima de nós! Veio o primeiro raio, nem ouvi a trovoada, o raio bateu no platô ende eu estava, voou pedrinhas para todo lado e um brancão de cegar.
Marcio foi o último a chegar no platô. E outro raio, este deve ter batido no cume, mas o choque veio junto, como se estivesse enfiando o dedo numa tomada. Com o choque que levamos, meu colega de cordada saiu correndo na direção do abismo, desengonçado sacudindo os braços. Felizmente parou na beirada.
Ainda tinha mais três descidas de rapel até a base da Teixeira e dali, mais de uma hora de caminhadas e descaladas até a estrada.
Agora nós quatro juntos no platô e levando um choque atrás do outro. Aí eu disse, vamos baixar a cabeça, senão vamos atrair os raios. Ficamos de cócoras, e veio outro raio mais forte ainda com um puta choque!
Alguém disse, tira as mãos do chão vamos ficar só de cócoras só com os pés no chão! Outro choque e aumentando!
Aí eu disse, não adianta ficar aqui, vamos acabar fritos! Vamos descer assim mesmo, com ou sem raio! Jogamos a corda para baixo e mais um rapel, um de cada vez para descer e os outros aguardando no platô. E os choques agora descendo pela corda molhada.
Foi assim nos quatro rapeis até a base da Teixeira. Lá chegando, eu disse para todos, aliviado: agora acabou, estamos fora da pedra e os raios não descem mais. Mal terminei a frase, e veio outro, violento, nos fez estremecer, a sensação é de que o nosso coração parava por alguns segundos. Foi o sinal: puxamos a corda e descemos a galope a trilha. Literalmente nos jogamos pedra abaixo naquele ponto da trilha que tem uma pequena escalada. Toda aquela trilha que leva mais de uma hora de descida até a estrada fizemos em menos de 20 minutos. Ao chegar na estrada, esbaforidos, pudemos dizer que vivemos de novo! E um pequeno detalhe, aí notamos que estávamos completamente molhados e, devido às circunstâncias, nem deu para notar.
Ao chegar no CEC (Clube Excursionista Carioca) escrevi essa história no boletim e comecei a receber relatos de outros alpinistas que passaram o mesmo sufoco. Aparentemente o que ocorre é que o raio mira no cume, no entanto, às vezes erra a mira e o raio acaba caindo na encosta, onde quase me pegou aquele primeiro raio.
A pedra molhada é condutora de eletricidade e com os raios caindo no cume, a eletricidade escorre pela fina encosta da montanha, eletrificando tudo que está no caminho.
Marcelo Werneck, 50 anos depois.”